E aos dois meses... sorrio...

16 de Setembro! Acordei pela primeira vez numa cama que não era minha, num quarto que não era meu, com uma janela que não me pertencia. Acordei pela primeira vez num Universo novo. Sozinho. Ou quase. Só eu e o Silêncio. Abri os olhos mas levei uns cinco minutos a sair da cama. Tocar com os pés no chão alcatifado do quarto seria confirmar a realidade. Tinha chegado e para aqui chegar, tinha partido...

Olhei pela janela e vi um suave vislumbre do que me aguardava. Olhei pela janela e não vi o que via no cérebro; as imagens que ainda desfilavam na minha mente e que emoldurava antes que se desvanecessem. Quanto se trata de memória a velocidade de preservação é imperiosa... Ou se conserva a memória num caixilho cristalino, ou se perde a mesma no turbilhão intenso que é recordar. No turbilhão que é voltar atrás, quando o relógio insiste em andar em frente.

Não tomei pequeno-almoço. As tarefas, banais, desinteressantes, rotineiras, ganharam um curioso colorido. Acordar, tomar banho, vestir, organizar o quarto que não era (nem seria!) meu, tudo feito com uma calma e morosidade propositada.

Queria saborear os primeiros momentos, agora que aqui tinha chegado. Partira, não me esquecia, mas apenas partira porque aqui queria chegar. Agora era tempo de não esquecer a partida, mas preocupar-me com a chegada...

Vieram rostos simpáticos, e nomes em catadupa, e uma torrente de papéis, e visitas oficiais/semi-oficiais/não-oficiais, e uma sem fim de apertos de mão e sorrisos. Vieram sons que não conhecia. Vieram imagens que nunca vi. Vieram sabores novos, que exploraram os limites das minhas papilas gustativas. Vieram cheiros fascinantes, que desafiaram as categorias ocidentais impressas no meu cérebro. Vieram gestos e cores. Vieram hábitos que nunca antes tivera. Vieram rotinas novas...

16 de Outubro! Primeiro mês! A palavra Saudade começa a fazer sentido. Agora sim a começo a entender. E entendo o drama do Fado, de quem sentindo tristeza pelo que perde, está feliz com o que ganhou. De quem para voltar à partida, lamentará o abandono da chegada. Psicodrama complicado, irresolúvel, que mais vale ser sentido do que racionalizado.

Primeiro mês! Ainda agora comecei a construção de uma nova vida, como quem ergue um novo palacete, mas já me sinto parte da chegada. O meu rosto (ao que parece) meio-turco, que leva muitos a duvidaram que seja "portekiz", facilitou a integração. A simpatia de quem cá vive, na chegada, fez o resto. E aos poucos somo ao muito que deixei na partida, o muito que conquistei na chegada. E com um mês volvido, celebrado em pleno Bayram, preparo-me para descobrir mais da chegada... E sorrio!

16 de Novembro! Olho para o amontoado de exames que terminei de corrigir na noite passada, antes do jogo de futebol que vi com uma nova intensidade. Curioso, eu que nunca gostei muito de futebol, sofri durante 90 minutos e vibrei com cada momento em que ouvi sons que me lembravam a partida... Olho para o amontado de exames que terminei de corrigir, para a pilha de expectativas que passou pela minha mão e sorrio de novo. Sorrio mais agora.

Dois meses! O tempo não ajuda à Saudade, apenas ajuda a que nos habituemos a ela. A Saudade e o Silêncio, quando os sons me são desconhecidos, são companheiras de jornada. Mas a Novidade e a Amizade também residem por estes lados... Dois meses depois estou certo que partir da Partida foi o mais certo; estou certo que chegar à Chegada não sendo inevitável, era desejável. Dois meses depois já não temo pisar o chão alcatifado...

Dois meses! E quando forem três? É difícil saber... Quando forem três a Chegada preparará a celebração do Natal, o mesmo Natal que na Partida não se celebra. Quando forem três, a Chegada estará a tiritar de frio e a Partida também. Quando forem três, a Chegada terá lágrimas dos Deuses a cairem a potes, na partida ouvi falar em neve... Quando forem três verei... Por agora são dois! Dois meses e a viagem continua...


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