Um dia a solo ou de como o Kurban Bayramı se tornou Eid al-Adha...

É a quarta vez que estou num país de maioria islâmica aquando do Festival do Sacrifício, ou Eid al-Adha na versão árabe e Kurban Bayramı na versão turca. Durante vários dias os muçulmanos sacrificam cabras, ovelhas, vacas ou camelos (uma novidade que descobri em Carachi) como forma de limpar os pecados e de agradar o Divino.

O Festival do Sacríficio é também uma recriação simbólica do momento em que Abraão se preparava para sacrificar o filho Ismael (ou Isaac [cristão e muçulmanos têm leituras diferentes do filho que foi oferecido em sacrifício]) e o anjo Gabriel, que vira provada a fé de Abraão, interrompe o profeta e faz aparecer um cordeiro que Abraão sacrifíca no lugar do filho...

O Festival do Sacrifício tem ainda uma terceira valência: a caridade. Após o sacrifício do animal, a carne do mesmo deve ser dividida não apenas entre parentes e amigos, mas de modo a que a mesma chegue aos mais pobres que, no resto do ano, não têm acesso à mesma. Limpam-se os pecados, honra-se a memória do patriarca dos monoteísmos e pratica-se caridade...

O Eid al-Adha ou Kurban Bayramı é um dos festivais religiosos muçulmanos mais importantes e, naturalmente, um momento para as famílias se reunirem. O ano passado partilhei desse espírito em casa de uma colega. No ano anterior passara os dias do Festival em casa de amigos, na agora tão distante Kırıkkale. E no ano anterior também me quedara pela Anatólia turca.

São quatro Festivais do Sacrifício seguidos e nunca, como hoje, me senti tão deslocado. Acordei cedo, com a residência num silêncio denso apenas rasgado pelo canto de alguns pássaros empoleirados na minha janela. Desci para o pequeno-almoço. Cruzei-me com um dos rapazes que assegura o funcionamento da residência. Disse-lhe Eid Mubarak ("Que seja um festival santo") e dei-lhe uma nota verde, de 500 rupias paquistanesas. Sorriu-me.

Esperei enquanto preparava a mesa do pequeno-almoço. Na mão direita, no dedo anelar, um anel com pedra negra que comprei na Turquia. Na mão esquerda um livro que trouxe de Portugal, sobre o Portugal do Império; o Portugal de um tempo que já foi, em que o exótico inundava Lisboa. E agora sou eu quem se deixa submergir no exótico, mas Lisboa está tão longe...

Leio sem pressas, a vida de Maria da Esperança (também ela fora do seu mundo!) enquanto almejo pelo pequeno-almoço. A omelete simples e a paratha (pão achatado típico do Sul da Ásia) chegam à mesa. O meu chá de jasmim chega pouco depois. E as compotas de maçã, de framboesa e de morango chegam em último. Não uso nenhuma. Prefiro um pouco de manteiga, antes de comer a omelete. Sozinho.

Termino o pequeno-almoço sem pressas. Sei que tenho colegas no quarto 2 e no quarto 5, mas ninguém quis sair do seu micro-cosmo. Opções... E quedo-me eu, e a Maria da Esperança, no salão da residência. Recusei dois convites para desfrutar da companhia de quem agora se fecha nos seus quartos, qual pérola dentro da ostra. Mas não lamento... O lamento fica para quando errar...

O dia passa sem pressas, sem acontecimentos, sem companhia. Fechado nas paredes do quarto 9 deixo que Borodin e Balakirev me embalem, enquanto leio sobre a Ásia; não a do Sul onde me encontro, mas a Central, que há algum tempo me fascina. O dia passa. Saio um pouco para ir correr. Esticar as pernas. Sentir o vento e o bafo quente de Carachi.

Ouço o azan expelido pelos microfones, colocados no alto dos minaretes, das três mesquitas, que se fazem ouvir na residência. O sol não tardará a pôr-se depois de mais um chamamento à oração. E recolho ao quarto 9. Nunca antes passara o primeiro dia do Festival do Sacrifício apenas comigo. Nunca antes tivera apenas os grafemas que compõem Maria da Esperança por companhia.

E num dia que poderia dar por perdido, sinto que ganhei. É certo que não sacrifiquei um qualquer animal comprado de antemão, mas sacrifiquei o contacto com gente; sacrifiquei convites de colegas (por essa gente que não se deixou contactar); sacrifiquei o meu tempo, por um tempo comum que não aconteceu... E amanhã, estou em crer, farei novo sacrifício...

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